“Retomada é algo intrínseco a luta e vida de povos indígenas. É a condição para a gente continuar existindo e se reproduzindo física e culturalmente”
[Jéssica Santos*] Kum’Tum Akroá Gamela, liderança indígena do povo Akroá Gamella no território Taquaritiua, no Maranhão, foi o convidado do Quintas Resistentes exibido em 10 de junho. A partir do tema “A constituição de 1988 na perspectiva indígena e quilombola”, Kum’Tum falou sobre identidade, ancestralidade e a importância do território para os indígenas e quilombolas, que percebem a vida como uma luta permanente para garantir a existência física e cultural das próximas gerações.
O povo Akroá Gamela vive hoje em uma região conhecida como baixada maranhense que envolve diversos municípios, entre eles Viana, Matinha e Penalva. Há também presença da etnia em cidades no estado do Piauí. Ao explanar sobre a localização geográfica de seu povo, Kum’Tum chama a atenção para o processo histórico de confinamento dos povos. Antes do processo de colonização, não havia fronteiras. Com a chegada das grandes fazendas, o território foi sendo tomado e os povos originários expulsos, configurando um processo de diáspora para várias regiões. “Estamos separados fisicamente, mas unidos e conectados espiritualmente a uma mesma ancestralidade que carregamos”, afirma a liderança indígena.
Kum’Tum explica que desde a chegada dos invasores, em 1500, os indígenas resistem a tomada dos territórios. Nesse sentido, a ideia de “retomada” não é recente, já que são séculos de resistência e luta em defesa da terra. “Retomada é algo intrínseco a luta e vida de povos indígenas. É a condição para a gente continuar existindo e se reproduzindo física e culturalmente”, afirma. Essa luta, no entanto, é historicamente marcada pela violência e pelo que Kum’Tum chama de desproporcionalidade de instrumentos. “O Brasil é construído sobre nossos corpos perfurados, rasgados”, destaca.
A violência presente há séculos também se manifesta de forma simbólica. Com a perda dos territórios, que ainda hoje são saqueados, divididos e vendidos, há uma profunda desestruturação e engessamento dos modos de vida, com graves consequências para os povos originários. “O território que dá sentido a existência vai sendo interditado e isso vai gerando um vazio existencial que tem sido historicamente preenchido com outros valores que ao final apenas dão conta da destruição das vidas, em que a gente passa a ser um morto perambulante”. Diferente do que prega o capitalismo, em que a terra é vista como um bem a ser comercializado, uma mercadoria, para os indígenas a terra é algo que não pode ser vendido. “A terra não nos pertence. Somos nós que pertencemos a ela, somo parte da terra”, afirma.
Constituição de 1988
A Constituição de 1988 é um marco importante nas lutas dos povos indígenas, ao elencar artigos específicos sobre o direito dos indígenas. Na análise de Kum’Tum, o texto constitucional marca uma mudança de perspectiva em relação a integração indígena e coloca em foco o direito à terra. Nesse sentido, configura-se como um direito originário e essencial, como aponta o artigo 231, que reconhece o direito pré-existente. Outro ponto importante destacado pela liderança indígena é o reconhecimento da capacidade jurídica dos indígenas.
De acordo com Kum’Tum, todos os avanços presentes na Constituição foram resultado da mobilização e luta de lideranças indígenas, que ocuparam os espaços e promoveram encontros com os constituintes e diversos setores da sociedade brasileira. Agora, a luta continua para garantir que a Constituição seja cumprida e as terras demarcadas. “Quando lutamos para a demarcação de um território, nós lutamos pelo bem de toda a humanidade. Com toda essa discussão das mudanças climáticas, da aceleração de destruição de ecossistemas, se o capital, o latifúndio, a mineração continuarem avançando sobre os nossos territórios, não é só o nosso futuro que está ameaçado, não é só o futuro dos povos indígenas”, ressalta.
Para Kum’Tum, a vitória da constituição de 1988 nunca foi “engolida” pelos latifundiários, donos do poder e da terra. O resultado disso, explica, são as inúmeras propostas de Lei no congresso hoje para abrir as terras indígenas para exploração, com ataques na área da saúde e educação. “São muitas lutas pra gente manter os direitos que estão na constituição”, afirma, explicando qual o sentido dessa resistência: “Não estamos lutando por um bem patrimonial nosso, mas para que o planeta possa se reconectar com suas ancestralidades, com suas energias mais profundas, que possa redescobrir um novo sentido para estar aqui e estar em comunhão com tudo e com todos.”
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